Faixa 3

segunda-feira

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no adesivo vermelho do ônibus que dizia assentos especiais para obesos eu li assentos especiais para oleosos e pensei -hm, bancos adstringentes.

sexta-feira

recusara os convites pra sair. não fora ao supermercado. agora encara duas garrafas de vodca na geladeira e decide – uma vez a cada segundo – que não vai abrir nenhuma. está cansado de curar solidão com decadência.

não seria difícil viver sem ela. não, não seria nem um pouco difícil. já tem treino, já faz anos. há outras mulheres no mundo. há paixões arrebatadoras de quinze segundos. há sexo casual, sexo cúmplice. há dinheiro. há diversão. há carros. há viagens. há a busca pelo luxo. há a busca pela sabedoria. há o budismo, a música, os livros, as causas nobres, as picuinhas, o poder, há até mesmo as improváveis possibilidades de amor. o problema são os restos dela que não se consegue matar.

a voz. o nome. a risada. os restos dela são como um dedo podre esmagado na palma da mão. ao mesmo tempo que é um apêndice inútil, não se pode soltá-lo. a única coisa que dá sentido à existência de um amputado é o membro descartado.

dentre as coisas que mais sente saudades está o choro. desde que sobreviveu, sofreu por muitas outras, mas todas as feridas que vieram só fizeram doer a ferida dela. quando depois foi deixado, quando abandonou, quando foi rejeitado e quando fugiu, era a ferida dela que se abria. pode dizer, com iguais porções de orgulho e tristeza, que na vida toda só chorou por uma pessoa.

segunda-feira

toda vez que apago uma dezena de spams com ideogramas me pergnto se são, de fato, spams ou se existe algum chinês no mundo que precisa desesperadamente falar comigo.

terça-feira

MANIFESTO PELO DIREITO DE MANIFESTAR

A chinelagem era o momento festivo dos alunos da fabico. Alguns diziam happy hour, festinha. Tanto faz. A origem ninguém sabe - quando chegamos já estava aí - mas sabemos que era tradicional. Certas coisas já nascem tradicionais. Assim que saiam da aula o povo se reunia ali no dacom e no saguão pra dar uma descontraída, tomar um breja barata, bater um papo, dar uma chacoalhada e coisas do gênero. Tudo acontecia ali pelo térreo, sem maiores problemas. O diretório juntava uns pilas com a venda do trago, não alterava muito o cotidiano do prédio já que terminava cedo e o pessoal se divertia: bom pra todo mundo. Agora não tem mais: a direção não permite. Porque? Reforma do prédio. Mas a chinelagem não era ali no térreo, onde, de reforma, só temos portas pintadas de laranja? Isso mesmo. NÃO ENTENDEU NADA? NEM NÓS.

E assim, fez-se a chinelagem marginal. Fruto da vontade de várias pessoas no reestabelecimento do evento, a idéia do protesto surgiu repentinamente, sem comando, sem uma organização formal, sem um cabeça. Surgiu e tomou corpo. A idéia era fazer um protesto nos moldes da tal festinha, mostrando que dá pra reunir o povo por ali sem causar problemas pra ninguém. O plano era ficar ali pela frente do prédio, batendo papo e curtindo um som, que obviamente seria improvisado na hora. REUNIMOS ALGO EM TORNO DE 100 ALUNOS. O som atrapalhou uma aula e foi imediatamente cessado, com o devido pedido de desculpas. Sem alternativas os alunos acharam que poderiam ocupar o espaço que lhes é destinado na faculdade, o diretório, pra se reunir, dançar e seguir com o protesto-festivo. ESTAVAM ENGANADOS. A segurança tentou, inexplicavelmente, barrar o nosso acesso ao prédio às nove horas da noite. Argumentamos que não estávamos fazendo nada de mais, já que éramos alunos e o horário era de funcionamento da faculdade. Não houve jeito: ordens superiores. Seguramos a porta com o pé e entramos pacificamente. Gritamos, por alguns instantes, algumas palavras de ordem, como manda o manual do bom protesto, mas nada que se compare as torturantes sessões de impressão da gráfica. Quem viveu, sabe. Sonzinho ligado, a moçada pôs-se a bailar. Enquanto o pessoal curtia, uma comissão de alunos pediu pra falar com o diretor, que "não foi localizado". Uma pena. Por volta de dez horas resolvemos sair as já que O CONTATO COM O DIRETOR FOI FRUSTADO. Os alunos que mais estavam afim de ver a volta do famoso regabofe fabicano e se disponibilizaram a estabelecer um diálogo com direção assinaram uma lista de presença do protesto e foram embora faceiros.

E o diálogo veio na forma de uma comissão que vai JULGAR os alunos que cometeram INFRAÇÕES, devidamente sacramentadas por uma certidão de ocorrência redigida pela segurança da faculdade sem a presença de alunos. Resumindo: o conselho da unidade usou como base a declaração de apenas uma das partes para decidir abrir um processo administrativo CONTRA OS ALUNOS que, pacificamente, protestavam contra uma atitude do diretor da fabico. Grande diálogo! Pois ouçam bem cambada; não se pode mais reclamar na fabico! E quem não gostar vai direto pro SOE!

A universidade é um local para fomentar o crescimento intelectual e cultural, definida pelo Artigo 2º do Estatuto da Instituição como "(...) expressão da sociedade democrática e pluricultural, inspirada nos ideais de liberdade, de respeito à diferença e de solidariedade (...)". Nós, alunos que apoiamos a realização das chinelagens na nossa ainda querida fabico, acreditamos que algumas idéias presentes nesse artigo do nosso estatuto não combinam com o estabelecimento dessa comissão de forma tão abrupta e intransigente. Não temos a intenção de afrontar ou desrespeitar a direção ou os membros do conselho da unidade. Queremos, sim, o restabelecimento do diálogo franco, direto e amistoso com o diretório estudantil e com os alunos desta faculdade. E, claro, queremos a chinelagem.

DCE, DACOM E ALUNOS

domingo

i play by the rules you set

encosto a testa e a ponta do nariz no monitor. abro bem os olhos na luz branca atordoante. me afasto. esfrego as mangas da camiseta na tela para tirar a oleosidade que ficou. imagino a dramaticidade que teria a cena se houvesse algum observador. o drama só existe quando há alguém para vê-lo. por isso escrevo.

te faria versos, se soubesse, porque acho que te cairiam melhor. perdoa a prosa, é que não consigo pensar aos poucos, linha a linha e a tal da métrica, me vem tudo ao mesmo tempo. seria como pedir ao mar que mandasse uma onda de cada vez (sem querer me comparar ao mar, uma coisa tão grande). tenho ouvido música para não me desesperar. não tem funcionado. quando me faltam palavras, eu digo teu nome. dentro da minha cabeça, é claro. uma vez eu li um livro por tua causa, foi a única que vez que eu li um livro por alguém.

queria saber o que acontece. me diz qual é a linha que eu não posso cruzar. me avisa quando for a minha vez que eu não quero perder a rodada. me diz de que cor são as tuas peças porque eu ainda não sei de que lado estou (estamos?) jogando. estou num bloqueio seríssimo se te deixa feliz saber. preciso escrever um release, uma matéria que eu minto estar pronta há mais de mês e umas coisas sobre cavalos para um roteiro. fiz a bobagem de condicionar a cópia de um cd à entrega de dois contos sobre cavalos. e nada me ocorre além da idéia fixa do sacrifício. cavalos, quando quebram uma perna, são sacrificados porque não curam e não servem mais para nada. corações partidos deveriam ter a mesma conseqüência nos humanos. nada mais incapaz e inútil que um humano segurando um amor que deu errado.

quarta-feira

Um dia o chefe da repartição chegou dizendo que todos íamos trabalhar até as sete da noite.
- Que porra é essa? - eu disse - meu horário é até às cinco e não fico aqui nem mais um minuto.
O chefe nem me olhou para responder.
- Bem, Antunes, se você quer perder o emprego, não tenho nada com isso.
Ele era o maior filha da puta que já pisara naquele prédio e não era eu quem ia acatar ordens de um imbecil.
- Não estou nem aí - disse para Sarampo, o garoto ruivo que trabalha na mesa ao lado - vou embora às cinco horas. Melinda está em casa me esperando e não vou trocar aquele lindo e quente traseiro pelo traseiro gordo de um idiota.
- Não sei não, Antunes. Acho que você devia ficar. São só duas horas, de qualquer maneira.
Não existia a menor chance de eu perder duas horas naquele lugar, então eu lhe disse
- Sarampo, se você quer chupar as bolas do patrão, tudo bem, isso é problema seu, mas não me ponha no meio disso, garoto.
Sou velho demais para algumas coisas.
Sarampo era um garoto bom, tinha a pele cheia de marcas vermelhas e sabia contar boas piadas. Era o tipo de sujeito que passaria a vida num emprego ordinário, mas sem perder a esperança de um dia ganhar uma promoção, mas ainda assim, Sarampo era um bom garoto. Eu é que não tinha a energia para fazer o que ele fazia.
- Sarampo - eu disse - se eu tivesse a sua idade estaria por aí catando umas mulheres ao invés de perder meu tempo num emprego miserável como esse.
Aposto que Sarampo nunca tivera uma garota. O país está cheio desses rapazes inexperientes. Ele apenas me olhou e riu. Desconfio que tinha mais pena de mim do que eu dele.
Às cinco horas eu levantei para ir embora. Sarampo levantou-se também e apertou minha mão:
- Foi bom trabalhar com você, Antunes.
- Ora, não seja estúpido, Sarampo. Eles não vão me demitir.
Cheguei em casa e encontrei Melinda bebendo uísque na banheira. Ela estava com os pés para cima e entornava a garrafa feito um marinheiro bêbado.
- Que merda você pensa que está fazendo Mel, quer se matar, é isso?
Eu odeio quando Melinda bebe. Ela sempre fica mais pirada do que eu.
- Estou apenas tomando um banho, b-a-b-y. - Ela virou um gole. - Você já fez coisa muito pior.
Era verdade, mas eu a odiava mesmo assim naquele instante.
- Vamos, saia daí, meu bem.
Carreguei-a da banheira até a cama. O bom de Melinda é que ela nunca reclamava de nada. Era como um maldito peru que não sabe que vai ser assado. Joguei os cobertores em cima dela e peguei a garrafa. Tomei o último gole.
- Um garoto lá do trabalho acha que eu fui demitido, Mel, você sabia disso?
- Não, baby, não sabia. - Ela se virou de bruços e abraçou o travesseiro. - Conte-me, por favor, antes que eu morra numa convulsão de curiosidade.
Eu adorava o interesse fingido de Melinda.

quinta-feira

Apertou os olhos, esticou a cabeça para frente criando uma corcunda no fim do pescoço e, por fim, tirou os óculos. Sacudiu-os ao reclamar dessas porcarias que não funcionam, para não admitir que sua vista vinha piorando quase diariamente. Agarrou o jornal e foi à cozinha após vestir seus chinelos de couro falso. Anunciou à esposa que o jornal insistia em diminuir as letras das notícias para que coubessem mais anúncios, os mercenários. Pediu-a que lesse a notícia da página direita, a terceira, da coluna do meio, de baixo pra cima. A mulher - que o deixaria dali a dois dias, sem adeus nem carta no corredor, para viver duas cidades ao sul, abandonando Afonso sem endereço para onde mandar suas cartas semanais (pois era um homem duro demais para escrever todos os dias) que criaram mofo jogadas no chão da sala e logo a solidão da casa diminuiu-se à solidão do quarto que diminuiu-se à solidão da cama que o diminuiu à loucura, o que serviu de pretexto para que ele fosse internado em uma clínica psiquiátrica pelos filhos que teve com a mulher que não o amava, morta em um acidente de carro dois meses antes da internação - pegou o jornal e largou-o em cima da pia. Colocou os óculos que estavam dependurados no pescoço por uma cordinha de algodão rosa e pediu de novo as instruções de onde deveria ler a tal notícia. Tirou a franja da frente dos olhos e fez pose de concentração. Mordia o lábio inferior quando lia. Era apenas algo sobre as plantações de arroz no interior, nada que interessasse. Ela deixou que o jornal se molhasse na água respingada da pia e serviu duas xícaras de chá de jasmim.

Aos dez, uma menina é uma romântica. Acredita que será lindo quando na noite de núpcias com um homem maravilhoso ela vai ter sua primeira vez e todas as seguintes serão com o mesmo homem maravilhoso e será lindo e único passar a vida com uma única pessoa. Uma menina aos dez ainda não sabe que a carne é fraca e não espera. A menina aos treze é uma filósofa. Já pensa no valor da experiência, na teoria de provar antes de escolher. Daqui a algum tempo, claro: a menina de treze quer estar pronta. A menina aos quinze é uma feminista, acha que casamento é um atraso, uma instituição machista. A menina aos quinze sente o poder de seduzir. A menina aos quinze dá. Dá porque, pelo menos, três gerações antes dela lutaram arduamente para que ela tivesse o direito de dar. E quinhentas gerações antes dessas teriam feito qualquer coisa para estar no lugar dela. A menina aos quinze dá em nome das antepassadas. Dá por ideologia. A menina só vai dar mesmo porque quer lá pelos dezessete. Quando ela não vai mais se importar em contar pras amigas no dia seguinte, quando ela descobrir que o prazer físico pode curar outras feridas. E todos os caras que comerão a menina aos dezessete, serão, provavelmente, imbecis. Os imbecis exercem um fascínio tremendo nas meninas aos dezessete. O imbecil é mais velho,tem pinta de homem, faz pose de homem, mas é um moleque superado em inteligência pela irmã mais nova da menina aos dezessete. A dessintonia do mundo é que depois dos dezessete, as meninas amadurecem e buscam qualquer coisa de mais íntimo que carne, enquanto os homens, depois dos vinte, buscam arduamente tornarem-se imbecis para comer as meninas de dezessete.

segunda-feira

Diogo me olha do alto de seu cigarro, sentado em cima da mesa de jantar, e balança as pernas para frente e para trás. Ele inventa uma coceira na coxa direita para ter o que fazer com a mão e solta a fumaça pelo nariz. Parece um búfalo ao fazê-lo. Eu estou sentada no chão, à sua frente, e começo a fuçar entre os dedos do pé na esperança que dali surja algum assunto, como "veja, acho que peguei frieira na aula de natação". Mas não há fungos, não há distração, apenas Diogo que me olha do alto de sua fumaça - o cigarro está amassado ao lado da coxa - sem conseguir decidir que reação me apresentar.

- A gente tinha decidido que não ia fazer isso.
- Eu sei, mas eu pensei melhor. Acho que é melhor assim.
- E o que eu acho não tem importância?
- Claro que tem. Mas tu mesmo disse que a decisão final era minha.

Eu já imaginava que tinha sido da boca pra fora, mas nutria esperanças de que ele tivesse o pudor de manter a palavra, mesmo que mentirosa. Ele sempre disse que era contra, mesmo antes de tudo acontecer. Afinal, foi ele quem comprou o teste, foi ele quem leu as instruções enquanto eu tentava me afastar como se não fosse comigo.

Agora ele desce da mesa e caminha em círculos ao meu redor. Pára na minha frente, eu não olho para cima, mas ouço-o suspirar. Cinco voltas ao meu redor depois, ele senta atrás de mim e passa os dedos pelas minhas costas. Sinto que agora não há mais nada, a decepção de Diogo não vai deixar restos de nós para juntarmos amanhã. Ele me abraça e encaixa o queixo no meu pescoço.

- Se fosse menino, teria se chamado Pedro.

quarta-feira

Imagine uma vida simples. Imagine se todas vidas fossem simples. Achar um bom companheiro, casar, cuidar bem dos filhos. Mas em algum momento da história, o homem decidiu que a simples continuação da espécie não era o bastante, e os homens deveriam fazer grandes coisas de suas vidas. De preferência, coisas para o mundo, pelas quais o homem seria sempre lembrado e admirado. Foi aí que tudo se desmantelou e nos transformamos em seres nascidos para desiludir, desapontar e morrer.

Qualquer um é capaz de achar alguém para amar, e que o ame de volta. Qualquer um pode ter um punhado de filhos e tratá-los com alguma espécie de carinho. Mas quantas pessoas são capazes de partir um átomo, terminar uma guerra ou flutuar? São poucas, e mesmo assim, essa quantidade insignificante de pessoas consegue arruinar a vida dos outros trilhões de humanos que vivem na Terra.

Ouvimos que devemos seguir nossos sonhos, lutar por eles e alcançá-los. Mas se fôssemos todos seguir nossos sonhos, estaríamos em algum país ensolarado, na beira da praia, sem nos preocupar com nossos corpos acima do peso que envergonham cônjuges e enojam moças magrinhas. E não sobraria ninguém para carregar pastas, tomar cafés amargos e chorar, noite após noite, o fracasso de ser comum.

segunda-feira

Ora, vamos, Bárbara, não faça essa cara, você nunca leu Bachelard? O homem é uma planta que pode se transplantar, mas é preciso que sempre se enraíze. A grande burrada dos homens é se enraizar em pessoas, porque pessoas vão embora. Eu, por exemplo, deixei minhas raízes crescerem em você e você foi embora. Não me olha assim, não estou te julgando, é apenas um exemplo. Então você foi embora, coisa que eu nunca entendi porque erámos felizes e, ok, eu paro, senta, Bárbara. Depois que você arrancou minhas raízes, ou levou elas com você, não sei, eu virei uma planta moribunda, como qualquer flor em vaso, como um galho caído, como mofo. Mofo não é planta? Bem, não importa. Vê? Você sempre se prende a detalhes. Acontece que de uma planta solta até se pode fazer um enxerto, enterrar um galho e esperar que ele crie novas raízes. Mas essas plantas sempre crescem de um jeito esquisito, um pouco tortas demais, ou pequenas demais, ou simplesmente disformes. Seria como tentar fazer um homem a partir de um braço, não pode dar certo. Sim, eu sei que Deus fez Eva a partir de uma costela, mas penso que está evidente que eu não sou Deus, Bárbara, querida, porque se eu fosse Deus não estaria aqui tentando falar em metáforas para alguém naturalmente incapaz de compreendê-las. Não, espere, não foi uma ofensa. Desculpe. Fique, Bárbara, eu te faço um café. Você ainda gosta daquelas misturas horríveis para capuccino? Vamos, vamos, eu te faço um café e você rega as violetas de cima da pia. Não, isso não foi uma indireta. Eu sei que eu não parei de falar em plantas, mas foi um pedido inocente. Eu tenho medo de derrubá-las, você sabe. As violetas, derrubar as violetas. Eu, agindo como um louco? Você que está sendo paranóica. Então está bem, vá, se você prefere assim. É uma pena, Bárbara, é mesmo uma pena. Sim, eu abro a porta, apenas me diga, era erva daninha o meu amor? Responda, Bárbara. Só dessa vez.

sexta-feira

Naquele tempo eu andava triste e carregava bombons de licor nos bolsos da calça. Era difícil aquele tempo. Graça também não me ajudava muito, naquele tempo. Ela corria seus dedos de pluma pelo meu pescoço e depois me fazia gozar com um boquete, mas isso era tudo. Qualquer prazer que não fosse físico, Graça me negava. Tinha certo encantamento, mas era essencialmente triste: o tempo, Graça, o prazer e, até mesmo, os bombons de licor.

Eu via a tristeza nas paredes, como chuva, ou rolando pelos móveis como mercúrio de termômetro quebrado. Nunca persegui a tristeza, mas ela sempre voltava, escura e tóxica. Mais ou menos como Graça. Não foram muitas as mulheres que tive depois de conhecê-la, buscava outras apenas quando ela passava muitos dias sem aparecer ou quando vinha cansada e sua língua não rodopiava como de costume. Eu era fiel, a meu modo incerto de fidelidade.

Na última vez que Graça veio, cometi a estupidez de tentar ser gentil e lhe ofereci os bombons que eu vinha alisando no bolso. Ela tomou ares de ofendida e disse ser claro que não queria. Perguntei porque, mesmo sabendo que o silêncio é a melhor ação diante do que não se entende. Ela sugeriu que eu guardasse meus bombons para as outras mulheres que ela sabia que eu tinha, ela é que não ia querer nada de mim. Aí estava, ela não queria nada de mim. Então, porque, meu deus, tanto esforço em me agradar?

- Para te fazer menos solitário - ela disse quase com vergonha.

Esmaguei um dos de cereja e tive vontade de chorar.

- Você não está conseguindo.

quinta-feira

Apoiou o cotovelo na lareira, deu um suspiro terminado em ai, ai e voltou para o sofá. “Estou preocupado”, me disse com cara de preocupação. “Porque”, perguntei em voz baixa. “Tenho um conto e não sei o que fazer com ele”. Corri até o jornal mais próximo, detestava quando ele tinha problemas da espécie. Abri a Zero Hora de três dias atrás e disse “É mesmo uma pena”. Ele ficou me olhando – sinto quando me olham – e começou a fazer gestos com as mãos: círculos imaginários, contas nos dedos, estalos das juntas.

Quando ele acendeu um cigarro eu soube que a coisa não ia parar por ali. “Você bem podia me ajudar”, disse na primeira baforada. “Mate o personagem”, respondi. Ele fez um minuto de silêncio, creio que em respeito à minha morte sugerida, e disse “É uma idéia curiosa”. Ele sempre dizia curioso quando queria dizer estúpido. E então enumerou uma lista infindável de motivos para não matar o personagem, à qual eu não prestei atenção, mas creio que todos reduziam-se ao seu ódio pelo lugar-comum. Amassou o cigarro no cinzeiro e enfileirou quatro almofadas no meio do chão da sala para deitar em cima. Uma mania antiga e, digamos, curiosa. Olhando pro teto me disse “Não sei porque ainda te peço ajuda, nunca chegamos a lugar algum”.

Levei meu jornal à cozinha e fingi que tomava um café. Não demorou ele veio correndo, bateu o braço no trinco da porta, não sentiu, e sentou do meu lado. Jogou as mãos na página que eu lia. “Tive uma idéia brilhante. Vou fazer o personagem se matar e deixar um bilhete que diz Joguem minhas cinzas no mar, pelo menos na morte a gente tem que se permitir um clichê, então, percebe, o clichê é dele e não é meu, percebe?”. Sim, era uma idéia brilhante. E um tremendo desperdício de tempo.

em resumo, esquece tudo abaixo disso. mudança de foco. agora aqui trabalhamos com exercícios de.... hmm... não importa.